vou descer ao fundo de mim mesmo
é uma descida ao mais profundo dos silêncios
em que o entendimento deixa de ser possível
em que as palavras já não sobrevivem
é uma descida em que o desejo, o sonho e a fantasia não encontram raízes
mergulho na razão
observo as linhas que formam a rede em que a civilização se constrói
em que eu me construo
oiço-lhe as formas e vejo-lhe os sons
sigo-lhe os cheiros
e tomo por cheio o que está vazio
continuo a mergulhar
vejo o que de mim fica num mundo de razões e palavras
e percebo que já parti
já parti...
mas quem me rodeia ainda não o percebeu
e trata comigo como se ainda lá estivesse
já não estou nos actos que em mim entendem
já não estou nas palavras que digo
nem mesmo quando lhes empresto algum calor
os laços que os outros entendem prender-me a uma qualquer realidade
já não prendem nada
não há ninguém a prender...
ultrapasso este ruído
e percebo que ninguém ouve nem vê ninguém
diga o que disser
faça o que fizer
as pessoas a quem me dirijo permanecem prisioneiras do seu entendimento
não me ouvem
não me vêm
não se dão conta da minha ausência
continuo a mergulhar na direcção do silêncio
os ruídos do pensamento dão lugar aos sons do desejo
sonhos e fantasias misturam-se na base da vontade
gerando forças que não reconhecem a razão
mas de que a razão se alimenta
sensações de bem e de mal-estar são procuradas ou evitadas
pela repetição de gestos de razões esquecidas
repetidos porque outros não são conhecidos
tão bons são aqueles como outros quaisquer
quanto mais repetidos os gestos
menos as sensações procuradas se verificam
e maior se torna a presença do pensamento
que por mais que tente
não preenche nem substitui o sentir desejado
a vida adquire o ritmo dos gestos repetidos
e o seu movimento ascendente empurra-me de novo para o mundo da razão...
mas nesse patamar da existência eu já estive
apesar de neste ainda não ter encontrado o silêncio que vislumbro
permaneço nele...
observo-me nos gestos repetidos do meu desejo de razões esquecidas
e sinto-lhes o vazio
centro-me nesse vazio e descubro a ausência da vontade
que alimenta os gestos que vou deixando de repetir
o ruído quase desaparece em mim
quase que sinto o prazer do silêncio
mas a viajem não terminou
um novo ruído se faz sentir
é um ruído que ganha forma em mim
sem que identifique em mim a causa
é uma variação de estados emocionais
de manifestações de humores que parecem surgir do nada
e desaparecer nesse mesmo nada
são estados em que a vontade e o desejo parecem apoiar-se
dando-lhes a razão razões
que não parecem esgotar e explicar o fenómeno
livre da tentação dos entendimentos fáceis
atento aos artifícios e ao artificial do desejo e da vontade
observo as sensações que registo
percebo-lhes a origem exterior
percebo-me sensível à dor
à tristeza e à zanga
ao prazer e à alegria do que me rodeia
como me percebo sensível ao vento e à chuva
ao sol e à luz
ao frio e ao calor
aos cheiros e paladares...
percebo que nada do sinto e tomo por meu o é de facto
as sensações ocorrem em mim e em mim me dou conta delas
mas elas não são minhas
a sensação é gerada em mim
mas não é gerada por mim
só é minha quando lhe dou corpo e me confundo com ela
recolho-me e observo...
tento perceber o que faço na sequência do que sinto
compreendo as dinâmicas de ruído de que sou parte sem me dar conta...
deixo de amplificar o ruído que registo
por via das reacções que tenho...
deixo de ser eco dessas sensações
distancio-me delas...
o silêncio torna-se mais denso
a luz e a escuridão desaparecem
as palavras esfumam-se
um mar de tranquilidade convida-me a entrar numa planície de silêncio
a vida já não é vida
a vida é agora uma palavra longínqua
que procura referir a vida
sem nunca o chegar a ser
há uma vida para além da vida...
longe do que entendia por vida
é nessa vida que me encontro...
é nessa existência que irei permanecer
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