sexta-feira, 27 de junho de 2008

Demasiados segundos

o dia tem demasiados segundos para que pensemos neles

se me perguntarem o que fiz durante um dia
consoante o dia
irei enumerar os lugares a que fui
serei capaz de listar as actividades que realizei
indicarei as pessoas com quem estive
as conversas que tive
poderei referir coisas que vi e que me despertaram a curiosidade
conseguirei revelar alguns pensamentos que povoaram as minhas fantasias e reflexões
e... pouco mais

num tempo que pouco mais será do que o que levou a pensar este texto
esgoto a descrição do que foi um dia na minha vida

dia após dia
como as descrições breves que deles faço
a vida ganha uma aceleração extraordinária
como se só o que entendo como momentos altos contassem
e todos os outros em que não acontece o que espero
ou me habituei a entender como importante
não acontecessem

as descrições dos meus dias tornam-se cada vez mais breves
e com elas o tempo considerado

e quanto menor se torna o tempo de que dou conta
mais diminui o tempo que considero ser presente
até que deixo de me dar conta do passar dos dias
e já nada retenho do que se passa em cada dia

agora só contam as datas entendidas como importantes

mas há sempre um momento em que o certo se torna questionável
e percebo que não consigo situar-me no que é suposto ser o presente
tão lançado que vou para o momento que é sempre o seguinte
ou de tão agarrado que fico ao que foi ou não foi que passou

as conversas que tenho deixam de ser comunicação
e tornam-se descrições de listas de eventos ocorridos
sobre os quais se definem entendimentos questionáveis
ou tornam-se exercícios de resolução académica de problemas hipotéticos
com recurso a equações de validade duvidosa

uma sensação de desconforto começa a instalar-se
questiono-me sobre onde é que está o meu presente
questiono-me sobre o que faço no passado e no futuro
longe de mim
em espaços que não aquele em que estou
próximo de pessoas que não estão e que não sabem que lá foram postas

deixo de reconhecer o homem que vejo no espelho todos os dias
pergunto-lhe o que faz ali
e não obtenho respostas

sinto que alguma coisa tem que mudar
sinto que a minha relação com o presente tem que mudar
sinto...

e cada vez que olho para o que sinto
a minha vida desacelera
o tempo vai correndo mais devagar
e onde antes não via nada
alguma coisa começa a ganhar consistência

no prazer ou na dor
antes extremos a procurar ou a evitar
encontro agora os momentos em que o tempo abranda
e nesse abrandar outras sensações começam a ganhar corpo

quanto mais olho para a miríade de sensações que se desenham
mais o tempo pára
e...
o presente começa a acontecer
cada vez mais impossível de descrever através de qualquer síntese

e por fim o tempo pára
a dor suaviza-se
o prazer ganha outros contornos
novas sensações surgem
a vida ganha outra dimensão
e a minha compreensão da existência transforma-se

onde antes supunha a realidade
já não encontro nada
só lá estou eu não sendo

penso que me enganei no caminho
mas quanto mais aconteço no presente e disso tenho consciência
mais compreendo que estou no caminho certo
não há caminho nem destino
não há passado nem futuro
apenas existe o presente

o dia tem demasiados segundos para que pensemos neles
mas eu quero vivê-los... todos

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