quinta-feira, 3 de julho de 2008

Mortos

todos os dias há um novo começo

todos os dias fazemos enterros

todos os dias vamos buscar os mortos que acabámos de enterrar

todos os dias insistimos em viver com os mortos o que não vivemos com eles em vida

todos os dias escondemos os mortos e a vida que com eles temos

todos os dias esgrimimos com os vivos utilizando os mortos que escondemos

todos os dias entre a vida e os mortos escolhemos os mortos

todos os dias de tantos mortos guardarmos já não nos lembramos dos mortos que temos

todos os dias perdemos a noção do que é a vida de tanto convivermos com os mortos que insistimos em guardar e em ter perto

todos os dias damos um pontapé na vida, virando-lhe as costas, tão ciosos que estamos da preservação dos mortos que são só nossos

todos os dias...

o tempo de convívio com os vivos torna-se mínimo
face ao tempo que com eles convivemos depois de mortos

se em vez de mortos falarmos do que foi e já não é para além da nossa memória
talvez se compreenda o disparate do que fazemos de cada um dos nossos dias

de tanto convivermos com os nossos mortos esquecemo-nos do vivo que estamos

eu já comecei a sacudir a morte da minha vida
e dos mortos dos outros aprendi a desviar-me

às vezes não me dou conta e retomo o hábito da esgrima dos mortos
quando com um morto sou agredido
mas vou aprendendo a diferenciar a vida da morte...

nessa altura paro
e deixo o morto-vivo ou vivo-morto que tenho à frente seguir...

se ao vivo não conseguir retirar o morto ou ao morto tirar o vivo
tento não lhe produzir dano

todos os dia há um novo começo

todos os dias fazemos enterros
e eu aprendo a deixar ficar os mortos onde estão...
enterrados

todos os dias...

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