terça-feira, 8 de julho de 2008

A casa que sou

durante anos fui uma casa vazia de portas e janelas abertas

o mundo entrou nela
e com ele muitos que não sabia quem eram
donde vinham ou ao que vinham

mas nada disso importava

nunca os escolhi
nunca os chamei

quem chegava entrava sem pedir licença
sem que lhe fosse pedido nada
e quando chegava era recebido de braços abertos e um sorriso
apenas porque chegava

enquanto assim o entendia
quem chegava permanecia da forma que entendia
partindo quando disso sentisse ser tempo

durante muitos anos uma multidão entrou e saiu dessa casa

com tais passajantes na minha vida
vieram o amor e a alegria
a felicidade e o prazer
o sonho e a fantasia
as certezas e as convicções
a complacência e a tolerância
a solidariedade e a amizade
e porque muitos vinham em dupla
vieram os seus complementos
a tristeza, a dor, a zanga...

porque a casa estava sempre cheia
e a cada momento chegava sempre mais um
a festa era constante

festejava-se a chegada
festejava-se a permanência
festejava-se a partida
sempre com grande estrondo
sempre com grande intensidade

e se no início não os escolhi ou chamava
dei comigo a desejar a sua presença
porque depois de tanto ruído e agitação
a perspectiva de uma casa vazia e silenciosa
parecia assustadora

de tão entretido estava com os passajantes
com a festa sem a qual julgava não conseguir existir
percebi que não conhecia a casa que era
não lhe sabia a forma e a cor
não lhe conhecia a dimensão e os materiais de que era feita
não lhe conhecia o prazer de ser e acontecer

olhando
percebi que alguns dos convidados que julgara terem partido há muito
ainda lá estavam instalados
por iniciativa própria ou não
à espera que olhasse para eles e os cumprimentasse
ou à espera que me despedisse deles na saída
como se espera de um bom anfitrião

continuei a olhar
e percebi que quanto mais ansiava pela confusão a que me habituara
mesmo disso não me dando conta
mais estreitas se tornavam as portas e janelas
em que os passajantes se atropelavam agora na saída e na entrada

deixei de desejar e ansiar
e as portas e janelas rasgaram-se
deixando entrar a luz e o ar

por momentos senti uma brisa suave
senti-me respirar
e pareceu-me vislumbrar a casa que não conhecia

encantado
senti o prazer de ser a casa que era

deixei de dar tanta atenção aos passajantes da minha vida

deixei de me centrar tanto no ruído por eles e por mim produzido

e descobri...
o prazer de ser o silêncio
de que as paredes da casa que sou são feitas

é no silêncio que vou descansar, ser e acontecer

é em silêncio que digo

abraço-te

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