quinta-feira, 17 de julho de 2008

Reis e Escravos

crescemos com a capacidade de sentir o mundo
e fascinados pelo que sentimos
descobrimos o prazer de experimentar o mundo

crescemos com a capacidade de raciocinar
e fascinados pelo que julgamos entender
descobrimos a prazer de fantasiar causas e efeitos

crescemos com a capacidade de nos emocionarmos
e fascinados pelos sentimentos que em nós encontramos
descobrimos o prazer de nos apaixonarmos ou de amar

a cada crescimento e capacidade experimentada
segue-se um novo fascínio
e a descoberta de um novo prazer
num processo sem fim

e cada vez que uma nova experiência acontece
pelo fascínio sentido
procuramos reter a sensação
sob a forma de uma memória a visitar
de um sonho a cumprir
de um compromisso que procuramos estabelecer com a existência
pela posse de um objecto...

e descobrimos o desejo

e pelo desejo
esquecemos a capacidade de sentir o mundo
para nos fixarmos e tentarmos repetir um sentir

e pelo desejo
esquecemos a capacidade de raciocinar
para nos fixarmos no que entendemos poder levar-nos
a um lugar a que julgamos querer ir
ou em que imaginamos querer estar

e pelo desejo
esquecemos a capacidade de nos emocionarmos
para nos fixarmos e tentarmos manter numa qualquer emoção eleita

distorcemos a existência
a nossa
procurando cumprir o desejo
procurando cumprir-nos no desejo
o nosso e o dos outros

de reis passamos a escravos

de homens livres passamos a homens comprometidos
pelo que julgamos querer
e cada vez que agimos no sentido do que desejamos
mais aceitamos acorrentar-nos
ao desejo que elegemos como senhor

quando das escolhas que imaginamos expressão de liberdade
não nos conseguimos libertar
uma sensação de insatisfação vai crescendo a cada nova experiência
inevitável
nem quando se tenta substituir um senhor por outro

são as nossas capacidades que nos continuam a dizer
que apesar de tudo
continuamos reis
escravos enquanto pelo desejo tentarmos fazer a vida acontecer

e se as capacidades, os fascínios e descobertas do prazer são nossos
não somos nenhum deles
de nenhum deles somos donos
nem nenhum podemos fazer acontecer porque queremos

apenas podemos deles ter consciência

porque acontecemos no centro da existência
somos capazes de a reconhecer
pelas capacidades, fascínios ou prazeres descobertos nesse acontecer

e seremos reis
enquanto nesse acontecer longe do desejo permanecermos

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