sábado, 4 de outubro de 2008

As pontes do recomeço

recomeçar...

a palavra aponta a ideia de voltar a começar...
o que já terminou

se alguma coisa terminou
é porque fosse o que fosse que aconteceu e cessou
esgotou a sua validade
deixou de ser parte da existência
já não integra a vida sem ser pela razão
ou pela memória do afecto
pelo sentir em nós ainda reconhecível

olhar para a vida e ver na prática do recomeço o caminho...
é assumir que não percebi o que aconteceu da primeira vez
e das vezes em que o recomeço se deu
o que faz com que me disponha a repetir tudo outra vez
tantas vezes quantas os sonhos ou projectos
que me proponha rever ou reinventar e viver
pela observação da falência do anterior e de cada um deles

curioso neste processo
é o manter de um propósito
que insisto em sobrepor às dinâmicas imprevisíveis da existência...

umas vezes mantenho o propósito, projecto ou sonho
e tento mudar os contextos e personagens da minha vida
numa história que insisto em tentar viver a todo o custo

outras vezes reformulo o propósito, projecto ou sonho
mas mantenho-me nos mesmos contextos e proximidade das personagens que quero preservar
a todo o custo

muitas vezes vou mudando os propósitos, contextos e personagens presentes
na medida do que penso necessário ao equilíbrio que imagino perfeito
reinventando a cada momento a história que julgo desejar viver

revejo tudo...
mas de mim altero apenas a periferia
sem nunca compreender a existência em que aconteço
que pelos vistos não coincide com o sonho ou projecto que para ela defini
e pela razão tento e insisto em construir e reconstruir

a vida não pára
nem se compadece dos sonhos ou projectos em que me julgo encontrar
e cada vez que penso num recomeço seja do que for
dou-me conta que afinal ainda não compreendi a existência e a mim nela

por isso terei que tentar novamente a experiência do sonho ou do projecto
que acredito irá nortear a minha vida

significa que não estou pronto para me entregar à aventura da existência
para aceitar a imprevisibilidade e inconstância da vida
sem medos, censura ou convicções
para tomar a realidade nas mãos e fruí-la

por isso recomeço... o sonho e o projecto

no meio da amalgama de fantasias em que transformo a minha vida
o meu sentir é a única ponte que me liga à realidade
mas em vez de atravessar essa ponte e entrar na realidade
(único sentido praticável de tal via)
fico à espera que a realidade atravesse a ponte
vindo ao encontro da minha fantasia...

mas isso nunca acontece
porque a minha fantasia não consegue conter uma infinitésima porção da realidade

como a ponte do meu sentir é frágil
perante tão poderosa força quebra-se
o que se traduz na dor em que construo a razão
que serve de fundação para cada novo recomeço

a vida não sabe o que é o recomeço
porque na existência só tem fim o que tem princípio
e enquanto me situar no efémero da realidade imaginada
a cada início seguir-se-á um fim
e a cada fim um novo recomeço
num ciclo interminável de dor e engano

o meu sentir e o afecto que me fazem desejar estar onde não estou
desejar estar ao pé de quem não estou
desejando fazer o que não faço
são as campainhas da vida a tocar furiosamente
pedindo-me para acordar e começar a viver... sem medo

antes fazia do meu sentir e dos meus afecto o pretexto... para recomeçar

agora faço do meu sentir o indicador do que tenho que fazer
das pontes que tenho que atravessar
porque as pontes
se as faço é porque as desejo atravessadas

recomeçar é construir uma ponte que não quero atravessar
por pensar que é a existência que tem que vir até mim

e ela vem...
mas não chega até mim
por manifesta falta de espaço e capacidade dessas pontes do recomeço
para suportar o que desejo ver por ela atravessada

sem expectativa de ganho não há risco de perda
sem inícios não há fins
e os recomeços deixam de ser necessários

o meu sentir e o meu afecto acontecem em mim
e são realidade quando atravesso a ponte que me torna um com a existência
na forma de um beijo
de um abraço ou de um olhar
de uma palavra ou de um sorriso
da mais sonora das gargalhadas
ou da simples presença

já não sei fazer recomeços...
já só posso deixar-me acontecer na proximidade de quem estiver
sendo amor felicidade e alegria
sem princípio nem fim
num eterno agora
sem medos ou anseios
sem condições nem convicções

deixo de ser livre e passo a ser liberdade
porque essa é a minha natureza
manifesta na forma do homem que sou

Sem comentários: