quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Fim da tarde

no fim da tarde
sento-me sozinho numa esplanada
observando os reflexos de um céu de cores desmaiadas
nas águas de leve ondulação de um lago contido

na mesa
um comer sem paladar aguarda a oportunidade de tomar a minha atenção
à volta observo o silêncio colorido das cadeiras e mesas vazias que me acompanham
enquanto um vento frio aproveita a ausência de um casaco que dele me protegesse

tomo consciência do contraste entre o cheio que está o meu coração
e a ausência que o vazio de pessoas que me rodeia em mim se faz sentir

não me procuro perfeito nem como tal alguma vez me afirmei
nem nunca dos outros exigi que o fossem
mas ensaio a consistência do meu agir
única coisa que até há pouco ainda esperava dos outros

agora... nem disso faço questão

quando me dizem que é tempo de partir... eu parto
quando me dizem que me querem apenas como amigo... eu aceito
quando me dizem que o que dizem não é o que estou a imaginar
porque se fosse esse o caso seria outro o agir e o dizer... e eu calo-me
quando me dizem ou fazem sentir que estou a ser inconveniente... eu afasto-me
quando me dizem coisas simpáticas ainda que por meias palavras... tento mostrar-me reconhecido

ao que me dizem ou ao que me fazem sentir... eu tento estar atento
e aceito
e respeito
e ajo de acordo com esse aceitar e com esse respeito que quem comigo se cruza me merece

por vezes
de tão empurrado ser e de tantas condições me serem impostas
verifico que a distância reclamada não me afasta nem me condiciona
mas torna prisioneiro quem das condições vai fazendo questão de dar conta
acabando por se tornar incapaz de fazer cair o nada que ergueu
e que de mim a afastou e afasta

porque o querer em mim desaparece a cada momento
dos outros não desejo nem proximidade nem distância
apenas mantenho o mesmo espaço que sempre tive e sempre lhes dei
apenas me posso dar a oportunidade do acontecer
e que apenas na presença pode ganhar expressão real

a quem da distância faz ou fez condição
cabe fazer cair as barreiras erguidas
não pelo dizer que procura ver entendido
mas pelo agir que à dúvida não deixa margem
sem condições ou garantias
de ver cumpridos quaisquer desejos ou afectos sentidos
ou de ver acautelados os riscos que entendem querer evitar

o caminho que percorro faz-me livre
e não há razões que possam alterar essa liberdade
em que o silêncio dos meus medos e dos meus desejos são os alicerces
de uma felicidade sem causas ou condições

o mundo faz parte do meu caminho
o mundo faz parte do meu silêncio
o mundo faz parte do meu sorrir porque faz parte do meu sentir

alguns lerão o que escrevi
deles, poucos me compreenderão...
desses, menos haverá que consigam a coragem de viver livres... das barreiras do nada em que se refugiam

até lá
continuarei sozinho
aguardando...
ainda que acompanhado

e porque a minha vida é feita de um agora cada vez mais absoluto
dou atenção ao comer que se revela mais apaladado que o melhor dos manjares da minha fantasia
recebo o vento frio que me gela a pele como o faria a um amigo íntimo
o silêncio colorido do vazio que me rodeia assume-se como discurso hilariante das ausências do meu presente
o reflexo calmo torna-se dança sedutora de uma água que nem a contenção que a define lago consegue evitar
e as cores desmaiadas ganham o aroma de um poema de amor
e uma vez mais me percebo liberdade
e uma vez mais me sinto felicidade
e uma vez mais...

não vou ao teu encontro nem espero que me procures... deixo apenas que a vida aconteça

Sem comentários: